“Estão-se nas tintas!”
Simplificando: mesmo que cada voo emita menos, teremos um céu com muito mais voos e esse crescimento significa que a pegada de carbono total da indústria poderá facilmente duplicar até ao final da década.

Depois de ter assistido ao World Airline Festival que decorreu em Lisboa no mês passado fiquei com a clara impressão que, se depender dos CEOs das companhias aéreas e dos aeroportos ali presentes, a solução preferível para resolver o problema da sustentabilidade desta indústria poderia eventualmente passar por simplesmente pintar os aviões com tinta verde.
Ironia à parte, ao assistir a este certame, incluindo a mediática e prontamente repreendida manifestação dos jovens no dia e no palco principais, saí de lá com uma única convicção: esta geração de dirigentes e de gestores aeronáuticos da “velha guarda” não fará absolutamente nada de diferente. No limite, com as normais renovações de frota, irá colateralmente reduzir a pegada carbónica vista sob um prisma unitário, isto é, cada passageiro aéreo transportado – individualmente falando – poluirá menos. Isso deve-se, em grande parte, aos avanços tecnológicos dos construtores e ao progressivo aumento de indicadores como taxa de ocupação de voos e capacidade de lugares por avião. Como indústria e considerando o seu todo, o futuro e o compromisso destes líderes para com os seus acionistas – públicos e/ou privados – permanece intocável: mais aviões, mais passageiros, maior volume, crescer, crescer, crescer, atingir e ultrapassar, com orgulho e com “bónus”, os níveis pré-pandémicos o mais rapidamente possível.
O resultado?! Escamoteadamente, e embora até possam ostentar melhores estatísticas de CO2 por passageiro-quilómetro, o enorme volume de novos voos e de novos passageiros previsto para a próxima década ultrapassará todos estes pequenos ganhos de eficiência. Simplificando: mesmo que cada voo emita menos, teremos um céu com muito mais voos e esse crescimento significa que a pegada de carbono total da indústria poderá facilmente duplicar até ao final da década. Se a aviação comercial civil hoje representa “apenas” 2-3% das emissões globais, a este ritmo a sua contribuição poderá ser muito maior.
De acordo com a Comissão de Transição Energética poderá mesmo atingir os 22% das emissões globais até 2050 e chegar aos 5% antes de 2030. Com esta perspetiva em mente, a minha conclusão é apenas uma: a trajetória da sustentabilidade do setor da aviação está à beira do desastre. Igualmente bem conscientes desta realidade, os líderes das companhias aéreas traçaram uma dupla estratégia que continuam a proclamar neste tipo de eventos incestuosos e sem contraditório: culpam governos, reguladores e agentes económicos da falta de alternativas, boicotando simultaneamente qualquer iniciativa que fomente a redução e/ou o aumento da tributação da sua atividade, por um lado; e por outro, lançaram-se numa grande campanha de marketing coordenada que pretende lavar e mascarar uma consciência verde na aviação que, na prática, não existe.
Seja promovendo a redução do uso de plásticos a bordo, seja com a criação das chamadas “tarifas verdes” inflacionadas, ou seja, até através dos próprios mecanismos voluntários de compensação de CO2 emitidos deixados ao critério e financiados pelos passageiros, nada disto está regulamentado, nada disto é controlado. E, sobretudo, nenhuma destas medidas influi nas emissões de CO2 de um voo. O otimismo não científico e não vinculativo expressado por esta liderança relativamente às distantes metas de 2050 apenas se justifica porque, nessa altura, já terão recebido os seus bónus, já terão deixado os seus cargos e muitos já nem sequer cá estarão para serem responsabilizados.
Qual será então o impacto da crescente pressão e do escrutínio público na aviação à medida que as catástrofes climáticas se multiplicarem nos próximos anos? Há um lado certamente imprevisível em tudo isto, mas já hoje sabemos que a construção de um novo aeroporto em Lisboa – cujo extraordinário aumento de capacidade é mascarado por um “temos de tirar o aeroporto da cidade para sermos sustentáveis” – é apenas mais um sinal de que a indústria se está totalmente “nas tintas” para o seu futuro e o de todos nós. E contra isto não há tinta vermelha que chegue para cobrir a vergonha de quem tem em mãos a responsabilidade de salvar não só esta indústria, mas também o planeta.
