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Ajudas de Estado (COVID-19) às companhias aéreas e os recursos da Ryanair no tribunal europeu (Parte II)

Jurista e professor da ESHTE

Ajudas de Estado (COVID-19) às companhias aéreas e os recursos da Ryanair no tribunal europeu (Parte II)

Jurista e professor da ESHTE

Carlos Torres
Sobre o autor
Carlos Torres

No artigo anterior (https://www.publituris.pt/2021/09/21/opiniao-ajudas-de-estado-covid-19-as-companhias-aereas-e-os-recursos-da-ryanair-no-tribunal-europeu-parte-i), introduziu-se a matéria das ajudas de Estado às companhias aéreas e os recursos apresentados pela Ryanair neste domínio na justiça europeia.

Depois da alusão ao princípio geral da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado interno (nº 2), à obrigatoriedade de os Estados-Membros antes de concederem a ajuda notificarem o respetivo projeto à autoridade europeia da concorrência (nº 3) e de uma referência preliminar aos auxílios estatais a companhias aéreas no âmbito da pandemia da COVID-19 (nº 4), entra-se agora nos casos das ajudas estais dinamarquesa e sueca à SAS e da ajuda estatal finlandesa à Finnair, reservando-se um terceiro artigo para o caso da TAP.

5) Indemnização dos danos causados à SAS pela pandemia: ajuda estatal dinamarquesa

O primeiro fundamento suscitado pela Ryanair na impugnação da decisão da Comissão de não levantar objeções à ajuda estatal dinamarquesa respeitou à exigência de que os auxílios concedidos ao abrigo do anteriormente referido artigo 107.º, n.º 2, alínea b) não poderem destinar-se a remediar os danos sofridos por uma única vítima, no caso, a SAS.

Sucede que o Tribunal Geral da União Europeia (TGUE) entendeu que os Estados-Membros não têm nenhuma obrigação de conceder auxílios para remediar os danos causados por um acontecimento extraordinário.

Contudo, se o decidirem fazer, a Comissão deve ser atempadamente notificada do projeto de auxílio (art.º 108.º/3 TFUE), de molde a obterem uma decisão de não levantar objeções.

Para além deste dever de atempada comunicação, os Estados-Membros não estão obrigados a remediar a totalidade dos danos causados por um acontecimento extraordinário, pelo que também não podem estar obrigados a conceder auxílios a todas as vítimas desses danos. Em conclusão, entenderam, os juízes europeus, que os Estados-Membros não têm a obrigação de compensar total ou parcialmente estes danos e não têm de abranger todas as empresas nessas condições.

No segundo fundamento invocado pela Ryanair, a Comissão teria alegadamente considerado, de forma errónea, que a medida em causa era proporcionada aos danos causados à SAS pela pandemia da COVID-19, mas existindo uma possível sobrecompensação dos danos sofridos.

O TGUE explicitou que o referido artigo 107.º/2/b) TFUE deve ser interpretado restritivamente, ou seja, que apenas podem ser compensadas as desvantagens económicas causadas diretamente por calamidades naturais ou por acontecimentos extraordinários, mas não considerou desproporcionada a ajuda estatal dinamarquesa – uma compensação superior aos prejuízos sofridos pela SAS.

No terceiro fundamento, a Ryanair abriu várias sub-hipóteses, acusando a Comissão de ter violado diversas disposições em matéria de liberalização do transporte aéreo na União, a saber:

a) violação do princípio da proporcionalidade: o tribunal entendeu que a medida em causa visa apenas indemnizar parcialmente a SAS pelos danos resultantes da anulação ou reprogramação dos seus voos, na sequência da instauração de restrições em matéria de deslocações impostas pela pandemia, pelo que não teve dúvidas quanto à sua proporcionalidade;

b) violação do princípio da não discriminação: o tribunal considerou que um auxílio individual beneficia, por definição, apenas uma empresa, “com exclusão de todas as outras, incluindo as que se encontram numa situação comparável à do beneficiário desse auxílio”, acrescentando
que, “pela sua própria natureza, um auxílio individual cria uma diferença de tratamento, ou até uma discriminação, que é, porém, inerente ao caráter individual da referida medida.” Outro argumento, assim, não acolhido pelos juízes europeus.

c) violação dos princípios da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento: aqui, sem grande dificuldade, o TGUE também indeferiu, pois nenhum entrave foi ou é colocado à Ryanair, nem a estabelecer-se nem a prestar os serviços de transporte aéreo.

O quarto fundamento invocado pela low-cost irlandesa prendeu-se com a apreciação das informações e dos elementos de que a Comissão dispunha ou podia dispor aquando da fase preliminar de exame da medida notificada. Esses elementos deveriam ter suscitado dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, pelo que seria patente o caráter insuficiente ou incompleto do exame realizado pela autoridade da concorrência europeia. À semelhança dos anteriores fundamentos, este também não foi acolhido pelo TGUE.

O quinto e último fundamento referia-se ao acontecimento extraordinário referido na lei e que, segundo a Ryanair, não teria sido claramente identificado na decisão da Comissão. No entanto, o Tribunal Geral concluiu que a decisão impugnada está suficientemente fundamentada, pelo que o derradeiro fundamento tampouco foi acolhido.

6) Ajuda estatal sueca à SAS
Em 11 de abril de 2020, a Comissão Europeia adotou a decisão relativa ao regime de auxílio sueco no âmbito da COVID-19, que havia sido comunicada oito dias antes. Considerou-se que a medida de auxílio, sob a forma de um regime de garantia de empréstimos para certas companhias aéreas, era compatível com o mercado interno, com fundamento no artigo 107.º, n.º 3, alínea b) TFUE, que prevê a situação de perturbação grave da economia de um Estado-Membro.

A medida visava proporcionar, às companhias aéreas, liquidez suficiente para manterem as suas atividades económicas, durante e após a pandemia da COVID-19. Este apoio ocorreria através de uma garantia pública especificamente concedida às companhias aéreas importantes para assegurar a conectividade da Suécia e às quais as autoridades suecas emitiram uma licença de exploração. Mais especificamente, tratou-se de uma linha de crédito renovável, no montante máximo de 1,5 mil milhões de coroas suecas a favor da SAS, justificada pelas dificuldades em obter empréstimos junto das instituições de crédito no quadro do regime de auxílio sueco. Pretendia-se indemnizar parcialmente a SAS pelos danos resultantes da anulação ou da reprogramação dos seus voos, mercê das restrições em matéria de deslocações impostas pela pandemia.

Em 24 de abril de 2020, a Comissão adotou a decisão final relativa à medida de auxílio de Estado da Suécia referente à indemnização dos danos causados à SAS pela COVID-19, considerando-o um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.º, n.º 1 TFUE, e compatível com o mercado interno, segundo o artigo 107.º, n.º 2, alínea b) TFUE, isto é, de a pandemia configurar um acontecimento extraordinário.

Os cinco fundamentos constantes da impugnação apresentada pela Ryanair são idênticos aos do caso anterior (ajuda dinamarquesa à SAS) e mereceram uma resposta idêntica por parte do tribunal europeu, ou seja, o não acolhimento de nenhum deles.

7) Ajuda estatal finlandesa à Finnair
A medida de ajuda estatal – in casu uma garantia do Estado cobrindo 90% do empréstimo durante um período máximo limitado a três anos, à qual a Comissão não levantou objeções – consiste em ajudar a Finnair a obter um empréstimo de 600 milhões de euros, junto de um fundo de pensões, destinado a cobrir as suas necessidades em fundo de maneio.

O fundamento para a ajuda estatal assentou no art.º 107.º/3/b) TFUE, conforme interpretado pelos pontos 2 e 3.2 da Comunicação da Comissão, de 19 de março de 2020, intitulada “Quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal em apoio da economia no atual contexto do surto de COVID-19”.

De harmonia com este artigo, podem ser considerados compatíveis com o mercado interno: “Os auxílios destinados a fomentar a realização de um projeto importante de interesse europeu comum, ou a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado-Membro;”.

A Ryanair invocou quatro fundamentos, os quais analisaremos em seguida.

1º) Violação do artigo 107.º , n.º 3, alínea b) TFUE
Para a Ryanair, excetuando o sector bancário, existem muito poucas decisões que autorizem uma medida baseada no referido preceito, ou seja, da perturbação grave da economia de um Estado-Membro, relativamente a empresas individuais. Além disso, a Comissão não demonstrou que o valor acrescentado ou os postos de trabalho criados pela Finnair permitam por si só concluir que a medida em causa é justificada para sanar uma perturbação grave da economia finlandesa.

Alegou ainda, a low-cost irlandesa, que a Comissão está obrigada a ponderar os efeitos benéficos do auxílio para a realização dos objetivos enunciados no artigo 107.º/3/b) TFUE, com os seus efeitos negativos nas condições das trocas comerciais e na manutenção de uma
concorrência não falseada.

No entanto, segundo o Tribunal Geral, o artigo 107.º , n.º 1 TFUE estabelece que são compatíveis com o mercado interno os auxílios concedidos pelos Estados-Membros ou provenientes de recursos estatais, “independentemente da forma que assumam”. Assim, o juiz europeu alertou que o artigo 107.º/3/b) TFUE aplica-se tanto aos regimes de auxílios como aos auxílios individuais (Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus).

Deste modo, um auxílio individual pode ser declarado compatível com o mercado interno na condição de ser necessário, adequado e proporcionado para sanar uma perturbação grave da economia do respetivo Estado-Membro. As autoridades finlandesas consideram, portanto, que, em razão da sua importância para a economia finlandesa, a insolvência da Finnair agravaria a então perturbação da sua economia. Sucede que a Comissão não considerou que a medida, por si só, sanava a perturbação grave da economia finlandesa; procurou, sim, estabelecer se, devido à importância da Finnair para a economia finlandesa, essa medida destinava a sanar a perturbação gerada pela pandemia.

O artigo 107.º/3/b) TFUE não exige que o auxílio apenas tenha o potencial de sanar a perturbação grave da economia do Estado-Membro, podendo coexistir várias medidas de auxílio que contribuam para esse fim. Por maioria de razão, não se pode impor que, para se basear validamente neste artigo, uma medida de auxílio sane sozinha uma perturbação grave da economia.

Diferentemente do alegado pela Ryanair, o TGUE entendeu que foram vários os elementos que a Comissão teve em conta para considerar que o auxílio se destinava efetivamente a sanar a perturbação grave da economia finlandesa causada pela pandemia, designadamente:

a) a exploração pela Finnair de uma importante rede interna e internacional, assegurando a conectividade da Finlândia;

b) a importância da Finnair para o transporte de passageiros e de mercadorias – em 2019 transportou 67% dos passageiros para, de e dentro da Finlândia, sendo a única companhia aérea que opera na maioria dos aeroportos regionais finlandeses e o principal operador aéreo de mercadorias na Finlândia;

c) as repercussões sobre os aeroportos finlandeses – a situação da Finavia, que opera os aeroportos regionais finlandeses, está umbilicalmente ligada à sobrevivência da Finnair;

d) a relevância como empregadora direta (6 800 funcionários) e indireta, sendo que as compras da Finnair aos seus fornecedores ascenderam, em 2019, a 1,9 mil milhões de euros, dos quais 40% eram provenientes de empresas finlandesas; é a décima sexta empresa mais importante da Finlândia, devido à sua contribuição para o PIB, com um valor acrescentado de 600 milhões de euros; e

e) o impacto na investigação, sendo que a Finnair está envolvida num projeto de investigação de aeronaves elétricas.

De harmonia com o Tribunal Geral, provavelmente não existia uma alternativa viável à contribuição da Finnair para as necessidades da economia e da conectividade da Finlândia. Consequentemente, a medida destinada a manter as atividades da Finnair, durante e após a crise, era adequada para sanar a perturbação grave da economia finlandesa.

A low-cost irlandesa invocou – também sem sucesso – que o valor acrescentado criado pela Finnair em caso de falência não desapareceria completamente. A totalidade da argumentação sobre se o auxílio podia sanar a perturbação grave da economia finlandesa à luz do 107.º/3TFUE não foi acolhida pelo juiz europeu. Para além disso, existe, conforme alegado pela Ryanair, incumprimento da alegada obrigação de ponderar os efeitos benéficos do auxílio, para a realização dos objetivos enunciados no artigo 107.º/3/b) TFUE, com os seus efeitos negativos nas condições das trocas comerciais e na manutenção de uma concorrência não falseada?

Os requisitos a observar são os seguintes:

1) o Estado-Membro em causa deve ser, efetivamente, confrontado com uma perturbação grave da sua economia;

2) as medidas de auxílio adotadas para sanar essa perturbação devem ser, por um lado, necessárias para esse efeito;

3) adequadas, por outro; e

4) por fim, proporcionadas.

Presume-se que essas medidas são adotadas no interesse da União Europeia, pelo que esta disposição não exige que a Comissão proceda a uma ponderação entre os efeitos benéficos do auxílio e os seus efeitos negativos, nas condições comerciais e na manutenção de uma
concorrência não falseada, contrariamente ao que é exigido pelo artigo 107.º/3/c) TFUE. Isto é, apenas na alínea c) é feita a exigência.

Deste modo, o argumento do caráter obrigatório de uma ponderação à luz do quadro temporário foi afastado pelos juízes europeus por inexistência de base legal.
Embora a medida confira uma indubitável vantagem à Finnair, porquanto a liberta de custos que deveria ter suportado em condições normais de mercado, a Comissão considerou, acertadamente segundo o tribunal europeu, que essa medida era necessária, adequada e proporcionada para sanar uma perturbação grave da economia finlandesa.

2º) Violação dos princípios da não discriminação, da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento

Quanto ao princípio da igualdade de tratamento, importa salientar que um auxílio individual beneficia, por definição, apenas uma empresa, excluindo as demais e incluindo as que se encontrem nas mesmas condições. A discriminação está inelutavelmente ligada a um auxílio
individual.

Do ponto de vista da Ryanair, se o auxílio fosse atribuído a todas as companhias aéreas que operam na Finlândia proporcionalmente à sua quota de mercado, o objetivo da medida seria alcançado de forma não discriminatória. Considerou, ao invés, o Tribunal Geral que se todas as companhias aéreas que operam na Finlândia recebessem apoios, em função da sua quota de mercado, dar-se-ia a redução do montante do auxílio concedido à Finnair, de modo que as suas necessidades de liquidez não seriam cobertas, o que, portanto, poderia ter repercussões graves na economia finlandesa.

Finalmente, quanto à livre prestação de serviços e de estabelecimento, o tribunal entendeu que a Ryanair não demonstrou de que forma o caráter exclusivo da medida é suscetível de afetar as prestações de serviços da Ryanair, a partir da ou destinados à Finlândia, ou de exercer a sua liberdade de estabelecimento.

3º) Violação do artigo 108.º/2 TFUE
O terceiro fundamento respeitava ao facto de a Comissão não ter dado início a um procedimento formal de exame, apesar de, do ponto de vista da Ryanair, existirem sérias dúvidas sobre a licitude do auxílio. A circunstância de o Tribunal Geral examinar o mérito dos referidos fundamentos precludiu a apreciação deste fundamento.

4º) Violação do dever de fundamentação
Neste ponto em particular, a Ryanair alegou que o raciocínio da Comissão, subjacente à decisão impugnada, seria inexistente, tautológico ou contraditório. Contudo, o tribunal entendeu que a decisão da autoridade da concorrência europeia está suficientemente
fundamentada.

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