Edição digital
Assine já
PUB
Opinião

Os deveres do hoteleiro e do operador turístico na denominada guerra das espreguiçadeiras

A indisponibilidade de espreguiçadeiras na piscina de um hotel induzida pelos outros hóspedes que as reservarem com toalhas, sem as utilizarem durante largos períodos, desrespeitando norma expressa do estabelecimento, que, todavia, não a fez cumprir, constitui uma falta contratual do prestador de serviços e do operador turístico.

Opinião

Os deveres do hoteleiro e do operador turístico na denominada guerra das espreguiçadeiras

A indisponibilidade de espreguiçadeiras na piscina de um hotel induzida pelos outros hóspedes que as reservarem com toalhas, sem as utilizarem durante largos períodos, desrespeitando norma expressa do estabelecimento, que, todavia, não a fez cumprir, constitui uma falta contratual do prestador de serviços e do operador turístico.

Carlos Torres
Sobre o autor
Carlos Torres

1) A ocupação de lugares, equipamentos e outros espaços de utilização coletiva de um estabelecimento
Têm surgido crescentes relatos nos media, designadamente na Euronews, de correrias e disputas pelas espreguiçadeiras em hotéis de grande dimensão.  Em Espanha despontou um novo profissional – o controlador de espreguiçadeiras – tendo por função ordenar este aspeto crítico do serviço das piscinas. E vão sendo referenciados casos de sucesso de quem deixou o negócio em Londres e rumado a Ibiza para se ocupar do lucrativo negócio da sua reserva.

Na ocupação de assentos, equipamentos e outros espaços de utilização coletiva existe um potencial para o conflito, especialmente quando várias pessoas almejam o mesmo assento ou espaço. Seja em transportes públicos, restaurantes, hotéis ou instalações de lazer as disputas sobre assentos, equipamentos ou áreas de descanso estão na ordem do dia.

O pagamento de um preço por um determinado serviço desfrutando de menos conforto ou vantagens do que outras pessoas numa situação comparável motiva divergências e descontentamento. Cada utente deseja obter o que considera ser o “melhor” assento, o melhor lugar ao sol, a melhor vista. A psicologia explica tal comportamento exigente e defensivo no desejo das pessoas pelo seu próprio território e na separação dos outros.

A “ocupação” constitui um incómodo generalizado: o ocupante de um assento, lugar ou equipamento que não se encontra reservado coloca peças de vestuário, livro, pasta e similares em espaços / equipamentos vizinhos e pode até ocupar fileiras inteiras de lugares, v.g. com uma toalha marcar várias espreguiçadeiras, ou a mesa de vários lugares é ocupada por uma pessoa.

Ao fazê-lo, implicitamente ou verbalmente afirma “Isto está ocupado”, sinaliza aos demais que esses assentos, mesas, espreguiçadeiras serão ocupados por pessoas que ele favorece as quais virão mais tarde. Tal comportamento implica que esses espaços ou equipamentos não deverão mais ser acessíveis aos demais utentes. O ocupante revela, assim, uma posição que nem sequer é assumida pela entidade exploradora, a qual em função do seu estatuto de plenos poderes poderia regular a atribuição dos lugares ou equipamentos.

Com efeito, a entidade exploradora pode intervir arbitrariamente, designadamente proibindo desde o início a “ocupação” de espreguiçadeiras com toalhas ou determinando que as toalhas ou outros pertences dos hóspedes serão retiradas pelo pessoal se a utilização não ocorrer dentro de um determinado período.

Do ponto de vista legal, as “ocupações” não autorizadas não têm qualquer efeito, até porque o titular do lugar não se torna proprietário, possuidor ou mero detentor do lugar que ocupou nem dos outros lugares.

2) Na ausência de reserva aplica-se o princípio da prioridade
O princípio da prioridade aplica-se em diversas áreas do direito, ou seja, dentre vários acontecimentos semelhantes, apenas o anterior deve ser tido em conta (prior in tempore potior in iure). As reservas contratuais garantem um assento, equipamento ou lugar específico para a finalidade contratual especificada pelo que sem confirmação de reserva, os lugares ou equipamentos só poderão ser ocupados de acordo com o princípio da prioridade. Ou seja, é licitamente ocupado por quem chega primeiro, quem se antecipar no tempo tem preferência no exercício do direito de “ocupar” o assento, o lugar ou o equipamento.

Naturalmente que a entidade exploradora pode e nalguns casos deve, com caráter permanente ou ocasionalmente em situações de pico de ocupação, estabelecer normas de funcionamento privativas do estabelecimento que disciplinem o uso desses lugares ou equipamentos de molde a assegurar que os utentes desfrutem esses espaços com a indispensável tranquilidade, segurança e elevado grau de satisfação.

3) A decisão do tribunal regional de Hanover de 20 de dezembro de 2023
O Landgericht de Hanover considerou que existe desconformidade de um package quando o operador turístico não intervém numa situação em que a indisponibilidade das espreguiçadeiras do hotel decorre da circunstância de outros hóspedes as reservarem para posterior utilização, algumas horas mais tarde, em desrespeito das normas de funcionamento privativas do estabelecimento adequadamente publicitadas.

O A. reservou umas férias em Rodes, para si e para a sua família (cônjuge e dois filhos), entre 24 de julho e 4 de agosto de 2022, pelo preço total de 5.260€. O hotel dispunha de seis piscinas, parque aquático e cerca de 500 espreguiçadeiras. Na zona das piscinas existiam placas que regulamentavam as regras de conduta para a correta utilização da piscina pelos hóspedes. Entre outros aspetos, nessas normas de funcionamento privativas do estabelecimento determinava-se que era proibido reservar ou bloquear espreguiçadeiras de piscina, colocando toalhas dos próprios hóspedes sobre as mesmas por mais de 30 minutos e, assim, ocupá-las sem efetivamente as utilizar.

No entanto, verificou-se uma prática de tolerância da entidade exploradora perante a reserva de espreguiçadeiras pelos hóspedes do hotel ao arrepio da orientação imposta pela sinalização.

Ao invés do A. e a sua família que aderiram às regras de conduta afixadas para a utilização das piscinas não reservando espreguiçadeiras com as suas próprias toalhas, embora na realidade pudessem fazê-lo sem mais delongas pois a conduta era tolerada, ninguém era advertido ou penalizado, como astutamente o operador turístico alegou em sua defesa.

No decorrer da viagem, porventura numa fase adiantada, o A. reclamou primeiro por e-mail datado de 31 de julho de 2022, ao guia turístico e aos funcionários do hotel que não havia espreguiçadeiras disponíveis para usarem durante o dia e principalmente nos horários do programa de entretenimento infantil, e exigiu ações corretivas.

O A. considerou que se impunha uma redução do preço em 798€ mercê da falta de conformidade do package, apoiando-se no art.º 14º/1 da Diretiva 2015/2302 sobre viagens organizadas, norma que foi transposta para o § 651m do BGB, ou seja, do Código Civil alemão. Recorde-se que de harmonia com o art.º 13º/1 da Diretiva o organizador é responsável pela correta execução dos serviços compreendidos na viagem organizada, in casu os prestados pelo hotel. Por seu turno, o operador turístico invocou que se tratava de uma simples competição pelos melhores lugares na piscina, ao alcance dos mais madrugadores, impondo-se a sua absolvição porquanto a referida legislação europeia das viagens organizadas não se ocupa da matéria.

4) A menos que tal seja expressamente convencionado não tem de assegurar-se uma espreguiçadeira para cada utente
O tribunal acolheu parcialmente o pedido, reduzindo o preço em 322,77€, um valor inferior ao peticionado pela circunstância de o A.  não ter comunicado a falta logo no início das férias. Só o fazendo mais tarde, incumpriu o dever do viajante de comunicar prontamente ao organizador qualquer falta na execução dos serviços que integram a viagem organizada por forma a que a mesma possa ser corrigida atempadamente.

Considerou, no entanto, que o operador turístico não era obrigado a fornecer uma espreguiçadeira a cada hóspede do hotel, o seu número deve estar numa relação adequada com a ocupação em cada momento. Não existe incumprimento se o número de espreguiçadeiras e guarda-sóis disponíveis for inferior ao número de hóspedes, pois geralmente nem todos querem apanhar sol ao mesmo tempo, como notou o Tribunal de Kleve, na sua sentença de 25 de outubro de 1996.

Também o Tribunal de Duisburgo, na sua sentença de 21 de janeiro de 2002, decidiu que se o operador turístico prometer espreguiçadeiras e guarda-sóis, sem especificar o seu número, é suficiente que ambos estejam disponíveis para 20% dos hóspedes do hotel e de harmonia com uma decisão do Tribunal de Munique, de 17 de fevereiro de 1999, 642 espreguiçadeiras para um máximo de 1080 turistas são suficientes, não constituindo, assim, uma falta de conformidade do package.

5) Deveres do prestador de serviços e organizador quando a indisponibilidade do equipamento é devida ao comportamento ilícito de outros utentes desrespeitando as normas de funcionamento privativas do estabelecimento
O juiz de Hanover considerou que caso existam espreguiçadeiras suficientes, mas estas não puderem ser utilizadas pelo viajante porque outros hóspedes do hotel, contrariando as normas de funcionamento privativas do estabelecimento, as reservaram com as suas próprias toalhas sem as utilizar durante extensos períodos, o prestador de serviços e o operador turístico devem intervir.

Não cabe ao viajante resolver a situação, através de incursões madrugadoras reservando espreguiçadeiras contrariamente às normas do hotel ou numa atitude confrontacionista retirando por sua própria iniciativa as toalhas alheias, atento o risco de disputas com outros hóspedes do hotel, em que não é desejável envolver-se, ainda para mais num período de férias.

Reduziu-se, assim, em 15% o preço da viagem para os dias afetados desde a primeira reclamação do A. de harmonia com o § 651m do BGB, que estatui a redução do preço durante o período em que ocorrer a falta de conformidade do package. Nessa eventualidade, o preço da viagem deve ser reduzido na proporção entre o valor do pacote turístico sem defeitos no momento da celebração do contrato e o valor real. Se necessário, a redução será determinada por estimativa.

Sobre o autorCarlos Torres

Carlos Torres

Jurista e professor na ESHTE
Mais artigos
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB
PUB

Navegue

Sobre nós

Grupo Workmedia

Mantenha-se informado

©2021 PUBLITURIS. Todos os direitos reservados.